segunda-feira, 14 de maio de 2012

Fantasia

Isso aconteceu quatro anos depois de eu parar de fazer shows. Minha vida era derrubar fraudes. Quando eu era criança, ficava fascinado com as apresentações do mágicos que passavam pela cidade, fazendo cartas sumirem e aparecerem de novo dentro de um garrafa "selada", ou com alguém que rasgava uma nota de dinheiro de um transeunte e depois a devolvia inteira. E foi por isso que eu vim a me tornar aprendiz de Assombroso David. Ou David Monteiro, como eu o chamava. E toda a fantasia da mágica desapareceu para mim. David era um dos melhores da época, sabia todos os truques, e me ensinou tantos quanto pode. Eu via um show com um colega fazendo truques com 3 bolinhas escondidas em 3 copos e imediatamente ficava entediado. Eu sabia como fazê-lo. Fazia até melhor. E foi graças a isso que eu acabei me integrando ao Comitê de Ceticismo e Caça ao Charlatanismo. Ou C4, como a mídia fazia questão de nos chamar. Mas as reações explosivas eram quase sempre daqueles que nós desmascarávamos. Eu mesmo tivera meus momentos de glória e reconhecimento, com shows em Las Vegas e aparições na TV. Mas aquilo também era entediante. Mas eu nunca alegara ter qualquer poder. Me dava ódio ver os pseudo-paranormais aparecendo em rede nacional, prometendo curas milagrosas e feitos fantásticos. Com não mais do que uma observação, eu notava como eles tinham feito aquilo. E logo esse ódio me fez integrar o grupo itinerante do C4. Nossa função era, todos os dias, receber novos charlatões na cede do Comitê, sempre jurando estar fazendo algo inexplicável pela ciência e pelas técnicas por nós tão conhecidas. Todos eles atrás de um grande montante de dinheiro e a fama de ter feito algo inexplicável até mesmo por nós. Nunca nenhum deles saia dali feliz. Mas eu mesmo não saia de lá feliz. Estava entediado, cansado. Era sempre a mesma coisa. Eu, claro, tinha talento para desmascará-los, mas era algo que eu fazia movido por sentimentos negativos. Desde que eu passara a fazê-lo não tinha dado mais nenhum show. Foi em algum momento de 1998, eu não me lembro bem, que ele veio até nós. Era o quinto ou sexto nome da lista, que eu nunca me dava ao trabalho de observar previamente. Mas assim que fui verificar quem era o próximo, reconheci o nome. Eu ainda encarava a lista enquanto seus passos ecoavam pela sala e ele chamou meu nome. - Philip. - Eu levantei os olhos para o observar. Ainda tinha o mesmo rosto de quando éramos mais jovens, mas sua expressão não era aquela displicente e jovial de alguém desafiando o mundo. - Daniel. - Eu respondi o comprimento do meu antigo colega de aprendizado nas salas de David. Ele havia abandonado o show biz a anos, quando seu filho e mulher lhe foram levados num acidente terrível. - Eu vim por que me disseram que você estaria aqui. - Ele não sorriu, e pareceu não se importar com meus colegas de bancada, ansiosos por desmascarar o que quer que ele fosse fazer. - Se você veio para falar comigo, podia ter me ligado. - Não, eu vou mostrar algo para vocês. - Mesmo se referindo a todos nós, ele continuou olhando apenas para mim. - Mas não quero o dinheiro ou a fama. Vou fazê-lo porque acho que você precisa ver isso, Philip. Meus colegas começaram um burburinho. Eu mesmo não compreendia. Todos que vinham até nós queriam os prêmios de ter enganado o grupo mais impossível de ser feito de tolo do mundo. E ele vinha dizendo que não gostaria dessas recompensas. Apenas aquilo já era algo estranho. Ele se afastou da bancada para a mesa, coberta com seus materiais. As pessoas que nos procuravam podiam trazer seus materiais, mas deviam deixá-los uma semana conosco para que verificássemos qualquer truque que poderia estar ali presente. Eu, particularmente, não era o responsável por essa avaliação, mas confiava o suficiente naqueles que a faziam. E assim que ele revelou o que usaria, eu entendi o que ele pretendia. Nosso professor tinha um truque, chamado Fantasia. Consistia em fingir se cortar e fazer o sangue "misticamente" pegar fogo, e depois tirar as coisas mais incríveis desse fogo. Nosso sempre tentara de várias maneiras dar um passo a frente, evoluir o truque, controlando a forma das chamas para que elas tomassem a forma de algo ou alguém, mas chegara, pouco antes de falecer, a conclusão de que era impossível. Ele começou. Fez um corte na mão, e o sangue começou a escorrer. Acendeu um fósforo e tocou o sangue com ele, fazendo esse entrar em combustão imediata. Então, ele se aproximou de mim. Com a chama na palma de sua mão, ele se aproximou, colocando-a bem na minha frente. Então, a chama começou a tomar forma. Primeiro, parecia uma bola. Então, uma cabeça. Logo um rosto começou a se desenhar. Similar a um velho, com uma barba não muito longa, uma expressão de estar se divertindo, a careca já avançada. O velho piscou para mim, e eu o reconheci. Era o meu professor. Gabriel extinguiu as chamas imediatamente e se afastou da mesa. Demorou um tempo para que eu percebesse que tinha que continuar meu trabalho. Me levantei e fui até ele. Pedi para ver sua mão, o que ele prontamente atendeu. Rapidamente pude verificar que o corte era verdadeiro e parecia cauterizado. Haviam até mesmo pequenas queimaduras aqui e ali na palma de sua mão. E não parecia haver resquício de qualquer fonte externa da chama, que era a maneira como David costumava fazer aquele truque. As mãos dele haviam sido verificadas antes dele entrar, assim como as mangas, os bolsos, e tudo mais, como era o procedimento padrão. Não havia maneira dele ter colocado algum tipo de luva para se proteger. Voltei para meu lugar na bancada, onde um dos meus colegas disse aquilo que era uma resposta padrão nos poucos casos em que não chegávamos a uma conclusão imediata. - Obrigado por ter vindo. Assim que algo for definido, entraremos em contato. Se não chegarmos a nenhuma conclusão no período de seis meses, uma quantia de... - Não. - Gabriel interrompeu. - Não precisam entrar em contato ou enviar qualquer forma de pagamento. Nem soltar nenhuma nota na mídia. Eu não vim aqui para isso. - Para que você veio, então? - Eu perguntei, antes que pudesse notar o que estava fazendo. Ele olhou para mim e sorriu pela primeira vez desde que entrara na sala. - Ele me disse que você precisava voltar a acreditar em fantasia. Isso aconteceu quatro meses antes de eu voltar a fazer shows.

Um comentário:

  1. Há muitas décadas atrás quando estreou no Rio de Janeiro a peça "Álbum de Família", do Nelson Rodrigues, Manuel Bandeira escreveu uma crítica muito boa no jornal lá que eu não lembro o nome. Nessa crítica ele dizia (resumidamente) que a singularidade é que cria o espanto. Não é colocando mãe querendo dar pro filho, filho querendo comer a prima, irmã querendo dar pro pai (essas putarias generalizadas do Nelson Rodrigues que tem nessa peça em questão), não é assim que se faz um Édipo. O fantástico, ao meu ver, segue a mesma linha... ele é o diferente, é o espantoso, é tudo aquilo que não só o leitor, mas também os personagens não compreendem muito bem ainda. Pode reparar: mesmo no mundo da fantasia a própria fantasia é sempre cercada de mistérios e lendas.. magia, dragões, forças ocultas.. tudo é distanciado dos personagens assim como é dos leitores.

    Talvez esse seja meu único problema com o conto.. Gabriel está seguro demais de sua magia, do seu mundo fantástico inserido no universo monótono. E os únicos seres do mundo fantástico que são (relativamente) seguros de seus mistérios são os "mestres", os "sábios", com toda a carga propiana, pavloviana, campbelliana e tudo mais do monomito que essas palavras carregam. E Gabriel - definitivamente - não é um mestre. O mestre nunca iria atrás do discípulo jogar-lhe a verdade na cara, além de outros indícios.
    O choque da realidade de Nelson Rodrigues pode ser comparado no seu conto com o choque do fantástico. E não é assim que tem que ser, se não ao invés do plot twist impressionante temos um "meh" olhando de lado e gente na sala de cinema falando "bah sério que é isso?".

    No geral gostei bastante.. só estranhei o final mesmo, que me pareceu um filme do David Fincher, com ele gastando 20 milhões em efeitos especiais pra uma cena de 5 segundos que deveria passar despercebida. Mas enfim... você está melhorando bastante seu estilo, e bem rápido =) parabéns bro!

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