domingo, 7 de agosto de 2011

Cicatrizes

                São nove e meia e ele ainda dorme, a noite anterior teria sido para ele talvez a primeira noite de pecado, o fedor de cigarro misturado com o cheiro de vodka barata invade o quarto, o mundo dele agora era aquilo, seria a primeira de muitas vezes em que ele voltaria para casa sentindo que fizera tudo errado, e sabendo que não poderia mudar exatamente nada daquilo que iria acontecer nas próximas décadas, e até talvez século, as marcas nas costas ainda doíam, mas ele não reclamava, estava sozinho num quarto que havia recentemente alugado, pequeno, mas que servia ele muito bem, os donos não faziam muitas perguntas, isso era bom, principalmente pelos pesadelos e gritos de noites, de alguma forma eles não se importavam com nada daquilo.
Ele acorda, toca suas cicatrizes para saber se tudo é realidade e não apenas um sonho, ele as sente duas faixas largas nas costas, o sinal daquilo que ele já fora, e uma lembrança daquilo que ele era, sentiu a dor no braço, e a dor de cabeça o atormentava fortemente, uma lembrança do que ele era agora, levanta vai até a cozinha sem camisa e pega um copo de água bebe dois ou três goles para ver se espanta a ressaca, a dona da casa se admira ao vê-lo sem camisa, pergunta sobre as cicatrizes, ele mente, sem perceber que agora pode mentir ele mente de uma forma tão fácil e com palavras tão doces que pouco a pouco tornam distante o que ele era:
- Acidente de moto, era muito novo, não consigo lembrar muito bem.
                A dona da casa aceita a resposta e sorri, oferece comida para ele, ele aceita, e come um pouco volta ao seu quarto tentando ordenar os fatos da noite anterior, ele havia chegado à festa e começara a beber, tal qual um humano, foi então que ele a conheceu, corpo delgado, cabelos loiros, talvez oxigenados, porém bonitos de uma forma pura, sua história só de olha-la ele já conseguia saber, tentava lembrar-se quem havia iniciado as apresentações, foi ela, ele era tímido demais para essas coisas, o nome dela era Fernanda, ele se apresentou como Jonas, seu nome verdadeiro era Ariel, mas ele abandonara este nome tal como sua existência anterior, ele um metro e oitenta, de corpo um tanto quanto magro e até um tanto quanto fraco, com um corte de cabelo estranho e um olhar negro que se usado da maneira certa enlouqueceria qualquer uma das presentes, mas aquela, aquela era a que merecia ser guardada e protegida, e seria ela a única que ele não poderia ter durante a festa mesmo que quisesse.
                No inicio foi fácil conversar, mas pouco a pouco, ele foi tomando a parte dos seus sentimentos dos seus sofrimentos, e agora na terra, cada vez mais ficava triste, se em outrora ele soubesse que existiam mulheres com tais problemas, bastava um toque de sua mão e ele mudaria completamente a sua existência, a ele tinha sido dado o dom de retirar o mal, e agora na terra o único dom que lhe foi dado, foi o de ver e ouvir estes sofrimentos e pouco a pouco aprender com eles, para quem sabe um dia retornar ao seu antigo posto.
                Agora diante do espelho ele observava sua cicatriz e lembra-se que ali existiam asas, tentava ainda entender o motivo pelo qual havia sido exilado ali na terra, e buscava no pecado e na dor de tantas outras, a visão para tentar entender o que fazia ali, mas não entendia.
                Sentia agora as dores dela, as confusões de sua cabeça, o seu medo, tudo isso lhe era transmitido pelo único dom com o qual ele ainda era privilegiado, ele dividiria as dores daquelas que ele guardasse, mas ele não chegara nem perto dela, mesmo assim ela havia conquistado, de todas aquelas com quem ele dançara, ou falara, ela era o único motivo, pelo qual ele ainda gritava ao seu criador em oração, afinal essa é a diferença básica entre os anjos e os homens, os homens são filhos de Deus, os anjos, eram meras criações meros trabalhadores que podiam ser demitidos em prol dos filhos tão amados daquele pai.
                Eu havia entendido sua dor, havia compreendido teu olhar, mas me afastei pouco a pouco dela, e nem me despedi, deixei que ela fosse e comigo restou apenas a sua dor, e seu isqueiro, a marca de cigarro que ela fumou, coisa assim, que pouco a pouco fizeram parte do meu cotidiano e mesmo sem saber se poderia ver ela novamente ou não, eu continuei sabendo que ela era perfeita, não por possuir beleza descomunal, ou uma personalidade tocando, mas porque ela dividira um pouco do que ela era comigo, mesmo eu sendo tão tímido, mesmo eu sendo tão babaca, ela dividira os seus segredos, com alguém que ela nem conhecia.
                E agora sentindo a dor das cicatrizes, dele e dela, ele vira-se no espelho se perguntando, se ela falaria as mesmas coisas, se soubesse que ele havia sido um anjo, um ser que vivia só do vórtex de sugar o mal e diluir o bem, seres que se vivesse um único dia com as mulheres, não iriam nunca mais deixá-las, afinal ela não sabem, mas também são anjos.

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