terça-feira, 13 de março de 2012

27 de Março

A primeira vez que eles se viram foi numa sexta, à noite. Ambos tinham 16. Mas não foi a melhor visão do universo. Não que ele fosse feio, mas também não era bonito nem forte, o que normalmente significava ser ignorado pela grande maioria das garotas. Nem ela, que sempre falhava naquele esforço tão estúpido de tentar esconder a própria beleza, acreditando que nunca ninguém a levaria a sério se fosse bonita.
A coisa foi feia mesmo pela situação em que ele se encontrava. Todo vomitado, e não da maneira boa (se é que há uma), mas com vômito de outra pessoa. Da amiga dela, que momentos antes parecia tão na dele.
Como a maioria das pessoas da festa estava mais preocupada em cuidar da garota ou da própria vida, ela achou justo ir ajudar ele. E foi assim que ele a viu pela primeira vez, tentando ser feia, entrando no banheiro enquanto ele tirava a camiseta.
- Quer uma ajuda.- Ela disse, enquanto ele tentava esfregar a camiseta com sabonete.
- Só se você souber secar uma camiseta em 30 minutos. - Ele respondeu, sorrindo, depois de um minuto de silêncio.
- Pra que a pressa?
- Não posso tocar assim.
Ela se surpreendeu. Por mais cabeça aberta que fosse, não imaginou que o garoto tão sem sal que sua amiga tinha ido xavecar era da banda.
- Qual seu instrumento? - Era um interesse verdadeiro. Ela só estava ali porque ninguém parava de falar naquela banda.
Ele fez uma careta, apertando o olho esquerdo e puxando o mesmo lado da boca pra cima, como se fosse uma coisa à toa.
- Minhas cordas vocais e as 6 cordas de uma guitarrinha.
Ele não parecia muito impressionado consigo mesmo. Ela chegou a se perguntar se a banda era tão boa quanto sua amiga insistia em dizer. Mas agora entendia o interesse da amiga no garoto, que ela nunca vira antes.
- Bom, vou salvar seu dia, se você prometer mandar bem no show. - Ela disse, e ele tirou os olhos da camiseta e voltou a encarar ela. Ela tirou a camisa xadrez que usava, mostrando estar com uma camiseta branca por baixo. A camiseta tinha uma imagem de Darth Vader na pose clássica do Tio Sam, recrutando pessoas para o Império. Aquilo tirou um sorriso dele, mas ele não comentou.
- Tá certo. Vou oferecer uma música pra você durante o show, em agradecimento. Qual seu nome?
- Lia.
- Lia. Prazer, Lia. Eu sou o Fred.
E assim ele subiu no palco, de camisa xadrez azul. E fez o show de sua vida. Como nunca fizera antes. Mas na hora da música para ela, ele não a encontrou na platéia. E nem depois, quando desceu do palco. E assim terminou a primeira vez que eles se viram.
No ano seguinte, o dia 27 caiu num sábado. Ela levantou, um tanto contra a própria vontade, mais cedo naquele dia. Não que meio dia fosse um horário bom para se acordar, mas ela costumava acordar bem mais tarde nos sábados. Mas ela prometera à uma amiga que iria com ela no churrasco do terceiro colegial da escola desta, e ela não era do tipo que deixava de cumprir promessas.
Assim, às duas da tarde ela se encontrava sentada numa cadeira ao lado de uma piscina, tomando cerveja, sozinha, enquanto a amiga pegava o seu rolo do dia. Enquanto prometia mentalmente que era a ultima vez que deixava alguma amiga a arrastar para um lugar cheio de gente desconhecida, sentiu um cutucão no ombro.
- Lia?
Ela demorou algum tempo para reconhecê-lo. Talvez porque ele tivesse mudado tanto. Ele parecia mais alto, e com certeza mais magro. Usava uma bermuda e uma camiseta dos Ramones, com as caras dos músicos trocadas para capacetes de Stormtroopers.
- Meu deus, você é o cara da banda! O... Fred, não é?
- Sou. - Ele ficou feliz que ela se lembrasse dele. Ela havia mudado pouco, mas já não tentava esconder a beleza com os cabelos ou qualquer outro artifício. - Mas a banda nem existe mais.
Eles conversaram a tarde toda. E quando a noite caiu, eles estavam ambos sentados na borda da piscina, com os pés para dentro da água. E foi ali que eles se beijaram pela primeira vez. Ele notou que ela cheirava a flores e fumaça, e tinha gosto de tequila. Ela notou que ele cheirava a loção pós-barba, e que a boca dele tinha gosto de menta.
Mas eles esqueceram de trocar telefones. E não haviam ainda redes-sociais para que se encontrassem.
Mas eles se encontraram de novo, no ano seguinte, no domingo, 27 de Março. Chovia muito, ele correu para baixo de um toldo, e lá estava ela. Conversaram sobre as vidas. Ele passara na faculdade de Economia. Ela começara a desenhar profissionalmente. Mas a conversa não durou muito. Ele tinha que ir até a empresa do pai para pegar uns documentos, e ela tinha que voltar para casa para terminar um trabalho a ser entregue na terça.
E assim, eles se viam, todos os anos, no mesmo dia. No outro ano, foi numa segunda, mas tão rapidamente quanto no ano anterior, na rua, enquanto ele ia até a casa de um colega fazer um trabalho.
Depois, numa quarta, ele acreditou ter a visto do outro lado da rua, mas não teve certeza, e não correu atrás. Mas era ela.
Em seguida, numa quinta, ela a encontrou enquanto passeava com o namorado na rua. Conversaram brevemente, perguntaram um sobre a vida do outro, e assim passou.
Então, sexta, eles se encontraram em uma boate, durante um show de rock. O baterista era amigo dele. Ambos estavam namorando, e com os namorados ali, então foi um comprimento cortes, um oi, e só.
Estranhamente, nenhum deles notava a imensa coincidência ali. Durante todos esses anos, eles se encontravam no fim do verão, em dias chuvosos ou não, e não percebiam o que ocorria ali. Era sempre 27 de Março.
E então veio o sábado, novamente. Ambos tinham terminado os namoros de forma desastrosa. E depois de um verão se remoendo, resolveram voltar a vida. O amigo dele tinha começado a sair com uma garota nova, que tinha uma amiga recém-solteira e que também tentava voltar a viver depois de um período de depressão. Ela tinha uma amiga que estava com um cara novo, e que tinha um amigo bem sucedido, formado em Economia. Não que ela ligasse, mas para a amiga aquilo era muita coisa.
E foi assim que eles se encontraram de novo, quase uma década depois de se conhecerem. Num dia 27 de Março. Chovia fora do bar, não pareceu para eles quando eles se reencontraram. Claro que os amigos foram os primeiro a se assustar quando eles contaram que se conheciam a tanto tempo, e como sempre se encontravam, sempre no final do verão. Foi o amigo dele que primeiro notou.
- Cara, vocês sempre se vêem no dia 27 de Março!
E eles riram daquilo. E conversaram durante a noite, até que um silêncio místico, íntimo, tocou os dois. E eles notaram que haviam mudado muito. Eram duas pessoas diferentes das que eram quando se conheceram naquela sexta feira. Eram duas pessoas diferentes daquelas que haviam ficado juntas no outro sábado, a tanto tempo.
Mas ainda eram o suficiente iguais àquelas pessoas para gostarem um do outro.
E a partir de então, todos os dias foram 27 de Março.

Um comentário:

  1. Esperando você me responder no twitter antes de comentar qualquer coisa.

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