domingo, 27 de maio de 2012

Paz Interna

Eu tinha oito anos quando eles vieram até mim. Era uma simples criança camponesa, subnutrido, sub-educado, sem qualquer perspectiva de vida naquele país pobre e sem expectativas, no qual a melhor chance de um pobre enriquecer era roubar.
Primeiro, eles me observavam de longe. Nunca entravam em contato comigo, mas me olhavam enquanto eu cumpria minhas tarefas diárias e nas poucas horas que eu tinha para brincar com as outras crianças do vilarejo.
Em seguida, um deles começou a fazer perguntas para os vizinhos, para os pais dos meus amigos. Até a única professora da escola, uma estrangeira que nos ensinava como trabalho humanitário, foi interrogada sobre mim.
Então, eles vieram até minha casa. Primeiro, conversaram em particular com meus pais. Como os religiosos que eram, meus pais ofereceram a eles chá e bandô, uma papa de farinha de trigo, água e ervilhas. Então meus pais vieram falar comigo.
Para a honra e glória da minha família, eu era a quadragésima quinta reencarnação do Maco Farata, o grande líder de nossa religião. Como tal, eu deveria ser levado ao templo principal para educação e preparação para a vida que eu deveria levar, bem como para as novas e maravilhosas tarefas que eu teria com o mundo. Minha mãe estava em lágrimas, que segundo aqueles que vieram me buscar, eram da mais pura alegria. Eu era novo, mas podia sentir nela a dor de se separar de seu único filho, e senti essa dor também.
Eu não entendia o que aquilo significava. Eu nunca mais passaria fome. Eu nunca mais passaria vontades. Eu teria tudo aquilo que eu quisesse e precisasse. Eu era o homem mais importante do país, a partir daquele momento. Mas mesmo que eu soubesse daquilo tudo, iria querer dividir com meus pais. É claro que eles teriam grandes compensações. Seriam líderes do vilarejo, todos dariam tributos ao grande casal que havia trazido o messias de volta ao mundo mais uma vez. Mas eu nunca mais os veria. Eu não podia lutar contra aquilo. Eu era uma criança. Mas eu havia posto na minha cabeça que eles haviam errado. E estava disposto a prová-los isso.
Nas primeiras semanas que passei do templo, fiz da vida do meu tutor um inferno. Eu nunca estava onde deveria, nunca fazia o que deveria, nunca aceitava ordens. Prestes ao complemento de seis meses de estudo, meu tutor me trouxe uma velha camponesa que estava no grande templo fazendo uma oferenda.
Ela se aproximou de mim, com os olhos arregalados, um buquê de flores numa mão e uma tigela de bandô na outra. Ela me ofereceu ambos, mas antes que eu pudesse pegá-los meu tutor os levou. Ela pediu para segurar em minha mão, o que eu atendi, assustado pela reação da mulher para com a minha figura.
Então, ela começou a se debulhar em lágrimas. Me pediu, entre soluços e fungadas, que intercedesse para com os espíritos superiores para que o espírito desencarnado de seu filho pudesse partir em paz. Prometi a ela que oraria aos grandes espíritos para que guiassem e mostrassem o caminho da paz para o filho dela. Imediatamente um grande sorriso nasceu no rosto dela. Ela agradeceu, e prometeu que iria anualmente ao grande templo, a cada ano com uma oferenda melhor e uma porção maior de bandô.
Quando ela se foi, eu pude compreender. Eu podia fazer o bem a muitas pessoas através daquilo. Eu era a representação carnal da esperança de milhões. Eu nunca mais lutei contra meu papel no mundo.

-------

Eu tinha já vinte e um anos quando ele veio até mim.
O país passara por grandes problemas nos últimos dez anos, e da guerra civil emergira um governo militar. Uma ditadura.
Como líder religioso e guia espiritual de uma religião que acreditava na liberdade e no bem próprio, eu era completamente contrário àquilo. Mas ele havia requisitado uma reunião, e meus conselheiros haviam me dito que seria péssimo recusar.
Foi assim que o general, grande líder do novo regime, veio ter comigo. Eu o recebi numa pequena sala mobiliada à moda antiga, com esteiras e uma pequena mesa de chá. A intenção era ele ver a força do costume e não tentar me devolver das minhas crenças. Ele também trazia bandô, como todos aqueles que vinham até mim com um pedido. Mas ele não queria me pedir nada.
Eu não tinha nada a dizer para ele, então me limitei a cumprimentá-lo e esperar que falasse o que tinha para dizer.
Ele começou como eu sabia que faria. Deu indiretas indicando que poderia minar o meu poder político. Que, sendo contrário a ele e seu grupo, eu estaria em maus lençóis e poderia vir a ser a derrocada da minha religião. Aquilo não me abalaria. Eu sabia da força da fé dos meus congregados, sabia que não se oporiam a nada que eu dissesse. Ele precisava de mim mais do que eu dele. Se eu falasse ao público para o apoiar, ele não teria que se preocupar com grandes levantes populares.
Então, ele começou a falar em números. Me disse quantas pessoas haviam morrido na guerra. Quantas pessoas eles estimavam que estivessem contrárias a ele. Quantas almas seriam levadas nas guerras que se seguiriam. Contou, gota de sangue por gota de sangue, quantas vidas uma palavra minha poderia salvar.
Uma semana depois, eu fiz um discurso público deturpando os conceitos da religião. Disse que os espíritos superiores o haviam mandado para estabelecer a ordem e a paz na nação, e que nós nada deveríamos temer com ele nos guiando. Vendi a ele a confiança que tinham em mim, em troca de alguns milhares de vidas.

---------

Quando eu os encontrei, eu tinha já quarenta e nove anos. A anos minha nação era uma ditadura militar, e eu reprovava todo e qualquer levante popular. Graças a isso, quando fui visitar uma nação ocidental, com seus valores de liberdade, haviam protestos contrários a minha visita a cada esquina, liderados por jovens cheios de ideais e força de vontade.
Mas eu prometi aos organizadores da visita que receberia dois daqueles jovens para uma conversa formal.
Minha surpresa não poderia ser maior com a escolha. Um deles era filho de um refugiado político do meu país. O outro era uma garota pouco mais velha do que eu era quando tive minha reunião com o general, e possuía uma grande marca na cara, uma cicatriz.
Eles mal me deram tempo para os agradecer por estarem ali. Imediatamente começaram a expor suas idéias e histórias.
O garoto falou primeiro, também sobre números. Me mostrou quantos haviam morrido nas torturas exercidas pelo partido do general. Me indicou quantas almas haviam sido levadas nas prisões políticas. Me contou sobre crianças tiradas de seus pais camponeses para fazerem as escolas militares e terem a mente programada para o bem da nação. Nada daquilo me surpreendeu. Desde meus vinte e um anos, eu havia acompanhado os números.
Mas então a garota falou. Ela me contou como fora fazer serviço humanitário em meu país, como minha professora uma vez fizera. Como haviam a ameaçado quando ela tentou evitar que um de seus alunos fosse levado pelos militares. Como havia sido punida na carne, no rosto, como um exemplo, ao ensinar aos alunos os conceitos de liberdade de expressão e de democracia. Me contou o choro das mães ao verem seus filhos sendo tomados. Como minha mãe chorara. Mas eu havia sido levado para um grande futuro. Eles eram levados para o frio e a fome nos campos de treinamento.
Eu nunca mais voltei ao meu país. Fingi estender por motivos diplomáticos minha estada naquele país ocidental, enquanto adquiri aliados ali que me ajudaram a tirar aqueles que seriam imediatamente punidos pela minha insolência de minha nação. Estabeleci numa nação neutra um novo centro religioso, com apoio e patrocínio das nações ocidentais e de alguns dos inimigos do general. E nunca mais vi o grande templo, meus pais, ou a velha que me levava grandes porções de bandô todos os anos.
----------

Ela me alcançou quando eu tinha recém completado oitenta e nove anos.
Eu a recebi como uma velha amiga, esperada. Eu tinha grandes planos para ela, e ela pareceu saber disso, vindo na melhor hora possível.
O general não havia me enfrentado diretamente. Havia tomado cuidado, pois sabia que os fiéis da minha religião eram muitos, e por isso ao invés de tentar me confrontar e acusar, havia contornado cada declaração minha com sua grande oratória. Mas ele havia falecido a alguns anos, e seu sucessor era brusco e sempre batia de frente com o que eu dizia. A menos de um ano, um de meus monges havia sido morto a pauladas por soldados ao fazer um manifesto público durante um evento militar na praça em frente ao grande templo. Fora um acidente, mas os conflitos resultantes disso haviam feito os líderes atuais declararem proibidas quaisquer manifestações públicas de religião no país.
E então ela chegou. Primeiro como uma tosse corriqueira. Logo, uma pneumonia. Eu sabia que era a hora, e chamei meus colegas mais próximos.
Eles sabiam o que deveriam fazer. Eu morreria, e eles diriam que eu fora envenenado por ordem do partido. Aquilo seria o suficiente para que aqueles que ainda não se movimentavam contra o partido se levantassem. Minha religião pregava a paz, mas também a punição dos injustos. Não haveria força militar que poderia responder a angustia de tantas almas implorando por liberdade.
Eu havia escrito tudo por linhas tortas, mas ao menos alguns conseguiriam ler.

2 comentários:

  1. Esse texto, juntamente com o Fagulhas Entre as Estrelas e o Fantasia formam uma trilogia. Cada um deles mostra uma faceta de um conceito que eu tenho sobre uma coisa que costuma ser um conceito universal. Se você não leu os outros dois, peço que leiam. E espero que consigam relacionar a ideia como eu a tive. Se não conseguirem, não é erro de vocês. Isso é um texto literário, é arte. E arte tem uma interpretação para cada pessoa que a consome.

    ResponderExcluir
  2. Oie!! Nossa ficou muito bom o texto Rafa!
    Cada vez me surpreendo com a forma que você escreve, muito bom!!
    Com certeza vou ler o os outros textos.
    Beijos!

    ResponderExcluir