terça-feira, 2 de agosto de 2011

Motor Elétrico

Foi mais ou menos pelo quilômetro 80 da rodovia. Havia ali um trevo, onde um amigo o deixara. Queriam seguir caminhos diferentes. Não tão diferentes assim, mas era ali que se separavam. Ele colocou a mala no acostamento, sentou-se sobre ela e segurou a placa que sempre carregava indicando que era um caroneiro.
Passaram-se quase duas horas antes de alguém resolver parar, mas finalmente aconteceu. Um carro branco, de um modelo que ele sempre considerara feminino, parou alguns metros adiantes e lhe deu um sinal.
Aproximou-se da janela do carona, que se abriu com o zumbido do vidro elétrico revelando uma jovem de cabelos morenos.
- Quer carona?
- Sim, só até a próxima cidade. Lá eu pego um ônibus.
- Entra.
Ele jogou a mala no banco de trás e se acomodou no carona. Um pouco desconfortável, não era comum uma garota bonita daquela se arriscar a dar carona a quem quer que fosse, ainda mais nos dias de hoje. Ela ligou a música e saiu com o carro.
Demorou um pouco até que um dos dois criasse a coragem de voltar a falar.
- Então, carona, hein. - Disse ela, mais corajosa que ele, sem dúvida.
- Sim. Estou acostumado a pegar carona.
- E é sempre que consegue.
- Sim, embora às vezes eu até recuse um ou outro caminhoneiro com cara de metido a besta que acha que qualquer caroneiro é gay.
Ela riu. Era uma risada bonita, forte, sem medo.
- Você não tem medo de dar carona?
- Por que, você vai me estuprar? - Ela disse, sem emoção na voz.
- Não, não, o que é isso? Nunca. - Ele disse, assustado. Ela definitivamente era corajosa.
- Então posso ficar tranquila.
Ele ficou em silêncio novamente. Coube a ela continuar o assunto.
- Meu nome é Valéria.
- Meu nome é Márcio.
- O que você faz da vida, Márcio?
Ele pensou por um instante. Ele mesmo não sabia dizer o que fazia da vida.
- Eu larguei meu emprego e agora vivo de bicos, de cidade em cidade.
- E o que você fazia? - Ela pareceu interessada. Normalmente as pessoas o consideravam louco de primeira.
- Era publicitário.
- Entendo. Eu também largaria. - Ela deu um sorriso para ele.
- E você, o que faz?
- Estudo. Medicina.
- Que legal. Salvar vidas.
- Pois é. - Ela disse, suspirando. Estava cansada daquele papo, sempre a mesma coisa.
Ele percebeu, e ficou em silêncio.
- E você pega carona só por pegar?
- Não. Acho que vou transformar isso num livro, não sei.
- Livros são sempre bons.
- Também acho. Estou lendo um excelente. Chama-se O Pêndulo de Foucault, do Umberto Eco.
Ela riu. Sem se distrair da pista, tirou de um espaço vago na sua porta uma cópia do mesmo livro. Ele soltou o ar, supreso.
- Isso é o que eu chamo de coincidência. - Ela disse, guardando o livro.
Ele se calou novamente, mas achou que era sua vez de começar um assunto.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e um, por que?
- Nada. É tão raro pessoas da sua idade gostarem de ler hoje em dia.
- Me desculpe, vovô, mas você não parece tão mais velho que eu.
- Bom, estou com trinta e três. Aposto que seu pai não é muito mais velho.
- Meu pai tem sessenta anos. - Ela não se incomodou de causar espanto uma vez mais.
- Me desculpe. - Ele disse, encabulado.
Dessa vez foi ela quem ficou em silêncio. Um silêncio vago, com o som da estrada. Ele olhou pela janela, admirando uma bonita paisagem, com árvores naturais, diferente das inúmeras plantações que havia na região.
- É tão bonito. As árvores. Se todas as pessoas parassem para olhar para as árvores, acho que o mundo seria mais tranquilo e as pessoas mais calmas.
Ele se virou, e reparou que ela olhava as árvores com o máximo de atenção que a direção permitia. O silêncio voltou a dominar. Ela ensaiou duas ou três vezes dizer algo, quando finalmente criou coragem.
- Acho que você vai escrever um bom livro.
- Obrigado.
Ela sorriu. Ele também. Mas o sorriso dos dois se anuviou quando as placas da estrada indicaram a proximidade da cidade.
- Você quer que eu te deixe na rodoviária?
- Não vai ser incômodo?
- Não, essa cidade é o meu destino mesmo.
Ele sorriu.
- Engraçado. Não acho que ela seja o seu destino. Você não vai ficar aqui pra sempre.
Ela corou. Não era a intenção dele, mas ele ficou feliz com a reação.
Foi um caminho curto até a rodoviária. Ela cantou baixinho a música, e ele acompanhou, para a surpresa dela. Chegaram então ao ponto de separação. Ele pegou a mala e se despediu dela. Agradeceu a ajuda enquanto fechava a porta. E virou as costas.
- Espera! - Ela gritou, abrindo o vidro do carro, com o mesmo zumbido elétrico. Ele voltou correndo até a janela.
- Você... - Ela parecia um pouco tímida, mas decidida. - Você parece cansado. Eu tenho um sofá, não quer ficar por lá hoje, e amanhã você pega o ônibus. Está escurecendo mesmo!
Ele sorriu, entrando no carro.

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