domingo, 11 de setembro de 2011

Negócios

O cheiro de cigarros e charutos, misturado com o do whisky barato tomava conta do ambiente. Havia uma certa névoa, causada pelo fumo, que dava um ar quase místico ao local. O barulho, o cheiro e a aparência do local até poderiam fazê-lo passar por um pub qualquer para aqueles que precisam de conforto no fim do dia. Mas a grande mesa coberta por pano verde, os dois seguranças sempre de olho no jogo e o crupiê sentado ali não deixavam dúvida. Aquele era o local de uma das várias mesas de poker ilegais do estado.
O local estava quase vazio àquela hora, exceto pelos funcionários, um senhor que já deveria estar em um estado elevado da mente sentado numa mesa do canto, e dois homens finalizando o jogo da noite. Eram George Gatilho, um desses sujeitos que é melhor evitar na rua, e Mathias, um jovem, porém conhecido, rapelador de mesas.
- Estou cansado, e acho improvável que você tenha uma mão melhor que a minha. - Disse George, logo após checar as cartas que o crupiê passara para ele. - Que tal apostarmos tudo? Valendo a noite? Acredito que estejamos mais ou menos com o mesmo valor.
Normalmente, o valentão estaria blefando. Mas de fato, naquela noite, a sorte de Mathias e a habilidade de George no jogo haviam feito os dois dividir, de maneira mais ou menos equilibrada, os oito mil reais que haviam sido apostados na noite. Ao menos até aquele momento.
Mathias olhou para suas cartas, e soltou um sorriso. O que mais ele poderia fazer? Apenas apostar na sua conhecida sorte.
- Feito. - Disse, empurrando todas as suas fichas para o meio da mesa e jogando suas duas cartas abertas de maneira que todos pudessem ver.
Um dois e um sete de naipes diferentes. Aquela mão era conhecida como a pior mão do jogo, sendo praticamente impossível vencer com ela. George apenas riu, mostrando seu valete e seu ás, ambos de ouros.
- Você é mesmo tão maluco quanto contam, garoto. - Ele disse, brincando com as cartas. - Mas vai ser bom ganhar dinheiro de você.
- Pode virar o flop. - Disse Mathias, ignorando o adversário e se dirigindo ao crupiê.
Um ás, um valete e um dois. As três primeiras cartas da mesa, sempre reveladas juntas para que uma nova rodada de apostas se iniciasse, ajudavam o Gatilho como só um sortudo poderia esperar. A sorte de Mathias parecia ter lhe abandonado, mas ele ainda tinha fé. Não tendo mais o que apostar, George já começava a puxar as fichas para perto de si. Mas foi parado pela mão leve, mas firme, do rapaz abandonado pela sorte.
- Ainda tem duas cartas para serem mostradas. Vamos até o river. - E sem tirar a mão do braço do rival, fez um sinal para o crupiê virar as outras duas.
O turn, carta seguinte a ser mostrada, foi um sete. Golpe de sorte, mas não havia sorte no mundo que poderia ajudar Mathias, ao menos na cabeça de George. Ambos tinham duas duplas, mas ambas as do valentão eram maiores. Mas o river, ultima carta a ser mostrada, provou o contrário. Outro sete.
Mathias soltou o braço de George Gatilho com um sorriso nos lábios e a usou para puxar as fichas para si.
- Trinca de setes, dupla de dois. Full house. Me desculpe meu amigo.
A cara de George era de descrença pura, de incompreensão. Mas logo passou para a fúria.
- Você roubou! - Nesse momento, colocou a no interior do seu paletó, num movimento que deixou Mathias alerta. - Maldito! - E sacou a arma, um pouco tarde, pois o ganhador já tinha se jogado para baixo da mesa.
Ao notar o revólver na mão do cliente, os dois seguranças sacaram as próprias armas. Durante cerca de dois minutos, o som ambiente de garrafas sendo arrumadas pelo barman foi substituído por estampidos da pólvora nos canos metálicos. E depois, o silêncio.
Mathias saiu devagar de baixo da mesa, ainda vivo, embora com os nervos pulando. Ainda teve tempo de ver um dos seguranças subir a escada para a rua estancando uma mancha enorme de sangue logo abaixo das costelas. O outro segurança jazia no chão, juntamente com George Gatilho, o barman e o crupiê. O velho bêbado escapara, adormecido na mesa onde estivera bebendo, como se nada tivesse acontecido.
Com velocidade de quem estava habituado àquela situação, Mathias pulou para dentro do bar, sacou o dinheiro das apostas e tudo que havia sido ganho com bebida naquela noite, escondendo no interior do próprio paletó, e correu para a rua. Não iria demorar para que a policia aparecesse, avisada por alguém que tivesse ouvido os tiros.
Correu pela rua para onde havia estacionado seu carro. Embora fosse um carro usado e do modelo mais barato da montadora, era um BMW. Ele se atrapalhou um pouco com o alarme, mas agradeceu a deus por não precisar achar a entrada da chave na porta. Sentou-se, ainda tremendo, e teve problemas para conseguir colocar a chave no carro para ligá-lo.
- Nervoso? - Disse uma voz, vinda do banco de trás. O susto foi o suficiente para Mathias dar um grito e soltar a chave. A voz era seca, rouca, pesada. E conhecida.
- O que você quer? - Disse Mathias, sem ousar olhar diretamente para ele. Apenas ajeitou o retrovisor de maneira a acompanhar onde ele estava.
Estava sentado no banco de trás, de maneira elegante, como só uma pessoa vivida consegue. Vestia um terno branco com riscas pretas, com uma calça social no mesmo motivo, um sapato italiano e uma camisa preta. A gravata se destacava, vermelha, e os olhos estavam cobertos na sombra de um chapéu Panamá, mas Mathias podia sentir o zumbido deles o observando.
- Nada. - O sujeito disse, sem se incomodar ou se movimentar. - Apenas acompanhando um dos meus investimentos. - Disse, com um sorriso brotando dos lábios na pela clara. E completou. - Essa foi quase, hein? Acho que você escolheu bem seu dom. Embora me envergonhe pela forma nada ambiciosa em que o usa.
- Olha só, eu não to com muito tempo. - Mathias não queria que ele percebesse o medo que ele sentia naquele momento. - Se você não veio me buscar nem nada, será que pode me deixar em paz, por favor?
- Na verdade... - O estranho se moveu pela primeira vez, colocando a mão esquerda sobre o ombro direito do rapaz. - Eu tenho uma proposta para te fazer.
- Não faço mais negócios com você. - O pobre sortudo ainda sentia o peso do último acordo que fizera com aquele sujeito estranho.
- Por que? Por acaso o que você ganhou da última vez tem te atrapalhado. - O homem, se é que podia ser chamado assim, soltou o ombro de Mathias, que suspirou aliviado. - Não se esqueça que foi justamente isso o que lhe salvou hoje.
Mathias soltou um riso de escárnio e começou a falar.
- Uma vida de sorte por...
- Por uma pena que você não precisa cumprir. - Interrompeu o elegante indivíduo. - Não se ouvir o que eu tenho para lhe propor.
Mathias preferiu ficar quieto. Talvez dois erros fizessem um acerto.
- Tem algo que eu quero. Algo do que eu não posso correr atrás diretamente. - O estranho coçou a barba por fazer, numa pausa dramática. - Um brinquedinho que meus inimigos adoram, e eu ia adorar ter em mãos. - Mathias não pode deixar de notar um certo desconforto no estranho enquanto proferia a ultima frase.
- E em troca...?
- Em troca, eu devolvo o que peguei de você. - Ele fez uma pausa para respirar, não que ele precisasse. - E ainda deixo você ficar com o seu presente. Que tal?
- E por que você abriria mão disso?
- Por favor, mais respeito. - Disse, longe de estar ofendido. - Você deve imaginar. Eu tenho o suficiente para uma eternidade, não preciso de mais uma. É toda sua, de volta, se você aceitar.
Mathias respirou fundo, sabendo que estava prestes a se afundar ainda mais na lama e na lamentação.
- Eu aceito. O que tenho que fazer?
O sujeito gargalhou.
- Excelente. Eu volto a entrar em contato para maiores detalhes. Agora, é melhor você ligar o carro e sair. A polícia está a apenas quatro quarteirões.
Quando o carro saiu da vaga de estacionamento e ganhou as ruas, havia novamente ali dentro apenas um ocupante. Seu dono e motorista, o jovem sortudo, Mathias. Mas o cheiro de enxofre ainda estava presente.

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