quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Um pouco de tudo - Segunda crônica

Os amigos da Carol eram do tipo que em outros tempos iam se chamados de boêmios. Artistas, amantes da noite, todo o tipo de pessoa que sua mãe não gostaria de te ver andando por aí em companhia. Mas eram divertidos, como eu fui descobrindo enquanto iamos de bar em bar coletando eles. Descobri que o método da Carol para reunir seus amigos era esse. Ela combinava com cada um em um boteco, e conforme ia os encontrando ia anunciando que precisavam encontrar o próximo amigo no próximo bar.
Foi assim q eu fui conhecendo um a um. Primeiro foi a Nanda. Ela ia ter uma importância sem tamanho no caminho que eu seguiria nos próximos tempos, mas eu nunca ia poder imaginar isso naquela altura. Era uma morena, um pouco maior que a Carol, tão bonita quanto, e extremamente falante. Descobri que ela era de tudo um pouco. Atriz de teatro, também escrevia peças, e estava em vias de dirigir pela primeira vez uma peça. Também fazia quadros, que vendia pela internet, que era a forma como ela se sustentava.
Depois, conheci o Gustavo, meu xará, que eles chamavam de Guga. Era um cineasta. Ele comentou sobre um filme que ele tinha dirigido recentemente, e eu percebi que o cara deveria ser algum figurão, pois eu lembrava de ver o filme dele em exibição num desses metroplex de shopping. Era o que eu fazia, na minha imensa solidão: passava as tardes dos fins de semana vendo filmes, sozinho, nos "big malls" da cidade mais viva do país.
Em seguida, a Anelisa, a quem eu viria a aprensentar o amor da vida dela, embora, novamente não podia nem sonhar com isso. Ela era bailarina, não tão famosa ou bem sucedida quanto os dois anteriores, mas notei que todos ali gostavam dela imensamente, e a protegiam como uma irmã mais nova. Sem perceber, acabei tomando essa posição também. Era a coisa mais meiga do universo.
Em seguida conheci pessoas que, mais tarde, não viriam a ser tão importantes assim na minha vida, embora com certeza sejam pessoas interessantes e, nas próprias histórias, de suma importância. Conhecia o Vincent, um americano artista plástico que era o mais figurão dos presentes, já tendo exposto sua arte no Metropolitan. Conheci o Fefo, que não me disse se seu nome era Felipe ou Fernando, ou mesmo Fefo de verdade, que era um estilista que vivia criticando as roupas das amigas mas não vivia longe delas. Em seguida nos encontramos com mais dois ou três indivíduos, com os quais acabei nem me aprofundando tanto.
E então chegamos ao último bar, onde encontramos o George. Entenda bem, não era simplesmente encontrar o George no bar por que assim estava combinado. Seria difícil convencê-lo a ir a outro bar, ou mesmo ele aceitar que a noite terminasse em qualquer outro lugar, além da praia. George tinha conhecido o Metáfora (esse era o bar) a oito anos. Tinha gostado tanto do lugar que nunca mais tinha passado uma única noite sem visitar o bar. Até o dia em que largou a carreira de corretor de seguros para comprar o bar. Convenhamos que era um sujeito de coragem. E, apesar dos gritos e estribeiras da sua bem conhecida e rica família, formada por diplomatas e outros tipos de engomados, estava indo bem. Logo ia abrir um novo Metáfora, em outra cidade.
Foi com essa notícia que nos recebeu, para logo em seguida se virar para mim, apertar minha mão, e questionar a Carol.
- Quem é ele?
Logo todos no bar sabiam quem eu era. O economista. Não era de forma admirada, nem de forma jocosa, que eles me tratavam assim. Eles só estavam admirados em ver um espécime tão raro por aquelas bandas. Logo me perguntavam como era ficar trancado num escritório. Nem imaginava que aquele pessoal todo podia se interessar pelo assunto chato que era o meu trabalho. Mas se interessaram. E eu me vi explicando como fazer fortuna com ações para um bando de boêmios.
E me senti em casa.
Aos poucos, a noite foi ganhando uma certa cor, um certo sabor. Primeiro, a Nanda subiu num palco improvisado com duas mesas e começo um monólogo. A Carol me sussurrou que eram falas de Lady Macbeth, da obra Macbeth, de Shakespeare. Fiquei meio receoso de lhe dizer que eu sabia, por isso não dividi com ninguém o fato de eu conhecer cada linha, cada palavra, antes que a atriz as dissesse.
Então, de repente, a atenção estava em Vincent, falando sobre a nova coleção de obras que começava, reproduzindo estátuas clássicas, famosas, e convidando grafiteiros para trabalharem nelas. Eu mesmo, que nada entendia daquela modernidade toda na arte, achei a idéia excelente.
Logo pediram a Anelisa que dançasse. Ela o fez, embora com um pouco de timidez inicial. E foi incrível. Guga, o sineasta, tocava piano enquanto ela dançava e cantava La Vie Boeme, do musical Rent. Incrível.
Por um momento, achei que o momento artístico tinha acabado. Me sentei num canto, com uma cerveja na mão. Para minha surpresa, Carol logo se aproximou de mim para conversar. Nem notei, pois tinha começado a escrever num guardanapo, enquanto ela se aproximava.
- Você é bem divertido pra alguém que passa o dia pensando em números. - Ela disse, olhando nos meus olhos.
- Achei que tinha ficado tão quieto que ninguém ia nem me notar por aqui. - Eu disse, sem levantar os olhos do guardanapo, mas sem me assustar também.
- Você fez um monte de comentários espirituosos, mas nem gravou eles. - Ela olhou em volta, sem procurar particularmente nada, apenas como quem olha em volta na sala de casa para ver se ninguém tirou nada do lugar. - Você é um pouco tímido.
- Um pouco. - Concordei, finalmente olhando para ela. Aqueles olhos azuis me encaravam, e eu notei que ela estava fumando, apesar de estarmos em um local fechado. Ela parecia a dona da casa. Podia mandar e desmandar por ali sem medo de represálias. Me peguei imaginando o que ela fazia para viver, mas sem coragem de perguntar. Ela notou que eu escrevia algo.
- Um poema. - E me tirou das mãos. - Posso ler para o resto do pessoal?
- Não, acho melhor não. - Eu tentei a parar, mas era tarde. Ela pigarreou, chamando um pouco a atenção, e começou:
Sem medo do maior encanto
Me deixo arrastar para o bar
Sem medo dos trôpegos e seu pranto
Desejando me afogar no mar.

O medo me consome, ardente
De que finde a fantasia feroz
E que quando chegue o poente
Me cerque a realidade atroz

Mas na guardo aqui, na memória
Esse momento de gozo e de glória
Com a trupe dos saltibancos

Como guardei no poema-minuto
Em parágrafos sem nenhum luto,
com versos coloridos ou brancos.


Notei um silêncio assustador. O que aquilo significava. Não haviam gostado? Carol olhou para mim, estendendo o guardanapo, e sorriu.
- É muito bom. - Ela disse, enquanto eu pegava o pedaço de papel. - Afinal de contas, você é bem mais interessante do que parece.

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