segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Mortalha de Papel

Ele foi o primeiro não familiar a chegar. E ficou lá o resto da manhã. Na hora que saiu para almoçar, encontrou o primeiro deles e deu o recado.
Voltou rápido, não podia perder nenhum deles. Ao longo da tarde, quase todos passaram por lá, e ele conseguiu dar o aviso, e convencer os mais prováveis de não aparecer.
O fim da tarde passou arrastado, com o peso das pálpebras do falecido no caixão. Muito choro, muita tristeza. Logo as senhoras, as tias, as tias-avós, e as amantes de ladainha, começaram a se retirar. A mãe ficou ao lado do filho falecido, apesar de demonstrar cansaço.
Ele caminhou até ela, estendeu a mão, e explicou tudo. Ela entendeu, leu a carta. Era uma das ultimas vontades do filho. Ela não ia descumprir. Foi-se dormir e se preparar para o funeral no dia seguinte.
E assim ficaram ali, eles, os convocados pelo morto, para a vigília. Pedro, Marina, Teresa, Felipa e ele, Heitor. O velho amigo, o primeiro amor, a confidente, o caso antigo e o orador. Sozinhos na imensidão daquele velório, o maior que o dinheiro podia pagar, cheio de poltronas, todas vazias agora. Só um vento frio lhes fazia companhia.
- Tá todo mundo aqui? - Era Pedro, sempre mais apressado. - Pode explicar pra gente o que tá acontecendo?
- Ainda não, tá faltando uma pessoa. - Respondeu pacientemente Heitor.
E esperaram, matando a maior parte do tempo em conversas curtas entre duas ou três pessoas, ou em total silêncio, por mais meia hora. Os relógios de pulso e os celulares indicavam quinze para as dez quando o ultimo convocado chegou, numa moto barulhenta, como que desafiando o descanso dos mortos.
Ele entrou o salão funerário sem cumprimentar nenhum dos presentes, se dirigiu diretamente para o caixão, semi-aberto. Colocou a mão sobre as mãos do defunto, sem pressa. Depois, se virou para os demais, para ele em específico, e perguntou.
- Pois bem, Heitor. O que você tem de tão importante a dizer.
Ele não esperou mais nada. Tirou do bolso do paletó surrado, que a horas estava jogado em uma poltrona.
- Quando encontraram o corpo do Denis, encontraram uma nota de suicídio com ele. Era endereçada à mãe dele, e só pra ela. - Ele fez uma longa pausa. - Mas não era a única nota. Ele tinha escrito mais 3, e deixado sob a porta da minha casa. Uma era pra mim, com as instruções sobre o que fazer para ler a segunda. Eu segui as instruções, chamando aqui cada um de vocês.
- Ele até previu que eu não viria se não fosse avisado por telefone, não é? - Disse o atrasado, interrompendo.
- Sim, ele disse isso na carta que deixou pra mim. Você só viria se avisado sobre a carta. Eu não a abri ainda, ele disse q eu só poderia lê-la se fosse em voz alta para todos nós sabermos o conteúdo juntos. - e indicando algumas poltronas, disse: - Sentem-se.
Enquanto os demais se acomodavam, ele foi até a cozinha do velório. Ao voltar, entregou uma cerveja na mão de cada um.
- Isso também estava nas instruções. - Disse, abrindo a sua.
Tomou um grande gole, sem se importar se os demais fariam o mesmo, mas todos o acompanharam.
E enfim abriu a segunda carta.
- Muito bem, vou a lê-la em voz alta. - Pigarreou. - Queridos amigos, se estão lendo essa carta, eu não estou aí para ouvi-la com vocês. Com certeza devido a quantidade massiva de analgésicos que planejo tomar essa noite. - Fez uma pausa, desconfortável. - Não quero chocá-los com essa ultima mensagem. Pelo contrário. São algumas das pessoas que mais me importam no mundo, e portanto, devo-lhes uma satisfação e uma mensagem final.
"Não é culpa de ninguém que eu queira acabar com minha vida. Sim, há muito de desilusão amorosa nisso tudo. Mas eu sempre fui um cara chato, queria poder controlar a hora que eu me fosse. Sim, meus amigos, o que dizia o bilhete para minha mãe era verdade: Eu fui diagnosticado com câncer terminal. Achei que não valia a pena esperar tanto para ir, então fiz meus últimos arranjos e peguei o trem." Uma gota de suor escorreu da testa dele, e ele parou a leitura por um instante para enxugá-la. "Pois bem, antes de começar a falar com cada um em específico, vou dizer que me lembrei de vocês antes mesmo de escrever essa nota. Deixei para cada um de vocês uma parte da minha fortuna." Mais uma parada, esperando os demais acabarem com sua comoção por aquele presente, e mais uma enxugada no suor frio. "Embora a quantia não seja nada comparada com a que deixei pra minha mãe, vai ajudá-los a realizar os planos e sonhos de cada um."
"Agora, vou começar por você, Pedro. Você foi o primeiro de todos que (espero) estão reunidos aí a me conhecer. Por muito tempo foi um grande amigo, mas acabamos nos afastando. Até o colegial, foi você que me ajudou a sobreviver. Sinto muito pelo que eu te fiz passar. Nunca quis fazer troça das suas decisões. Percebi tarde demais que o fato de você gostar disso ou daquilo não deveria influenciar nossa amizade. Peço que me desculpe por ter sido um amigo tão ruim." Pedro chorava. A água que escorria no rosto de Heitor era suor frio. Ele não gostava de estar sendo um tipo de arauto dos mortos, mas respeitava demais Denis para parar agora.
"Teresa, minha amiga. Você sabe quase todos os meus segredos. Sabe de cor o nome de todas as garotas que eu te confessei amar. Preciso deixar nessa nota dois segredos que eu nunca te contei. Primeiro, eu não me tornei seu amigo sem segundas intenções. Me apaixonei por você na faculdade. Na época, eu namorava, mas me aproximei de você mesmo assim. Mais um pecado meu. O segundo segredo é o que me pesa mais: Quando você namorou o Silvio, eu sabia das puladas de cerca dele, mas não dizia nada. Desculpe ter esperado ele te pedir em noivado para contar. Eu podia ter feito a situação ser menos destrutiva."
"Pra continuar, tenho que voltar agora no tempo e pedir desculpas. Marina, nós ainda namorávamos quando eu me aproximei da Teresa. Mas não precisa ficar brava com ela, que nunca me deu bola, e acabou virando uma grande amiga. Mas precisa ficar brava comigo. Eu te trai, mais de uma vez, e todas sem remorso, até essa hora final. Só agora me arrependo. E estou te contando isso agora para que você não se arrependa de ter terminado comigo. Você estava certa, eu estava te traindo. Peço seu perdão. Saiba que as horas que eu gastei imaginando como poderia ter sido foram sofrimento o suficiente." Quase todos choravam. Só Heitor e o motoqueiro ainda permaneciam sem lágrimas.
"Felipa, eu também preciso pedir seu perdão. Eu te enganei, manipulei minha forma de ser pra te conquistar. Fiz o que estava ao meu alcance pra parecer multi-cultural e antenado, atencioso e acolhedor. Não era eu. Eu estava imitando uma outra pessoa que eu conhecia muito bem. Eu te cativei dessa maneira. E aí te troquei. Se serve de consolo, ela era o amor da minha vida. E você ia ficar melhor sem o meu teatro."
"Heitor." Ao ler o próprio nome, enxugou mais um gota. Só então percebeu que não era mais suor. Ele havia ingressado no clube das lágrimas. "Dos aqui presentes, você foi quem eu traí mais profundamente. Você foi meu melhor amigo." Um soluço veio incomodar a leitura. "E ainda assim eu fiz com você o que fiz." Maldito soluço. "Você amou a Felipa primeiro." O nariz começava a se encher, para completar o choro. "E depois, amou a Denise primeiro." E o soluço insistia. "E eu roubei as duas." Já eram lágrimas demais para serem enxugadas. "Sinto muito pela falta de lealdade. Fui tão ruim nisso quanto você foi bom." Os olhos marejavam. "Eu não confiaria essa tarefa a mais ninguém no mundo."
Precisou parar. Se sentou, tomando um ar. Os olhos estavam muito borrados de lágrimas para continuar a leitura imediatamente. Todos ali estavam emocionados, menos ele, o último. Ele ainda estava incomodado. Era dever de Heitor revelar se aquele incomodo era com razão. Era uma espinha presa na garganta de todos ali.
"Arthur. Você não deve imaginar o que faz aqui. Não era tão meu amigo. Mas era o melhor amigo da Denise." Arthur se levantou e começou a andar de um lado para o outro. "Não o odeio pelo que aconteceu. Foi sua culpa, em parcela. Mas aconteceu, como acontecem essas coisas de vida e morte." A respiração do motoqueiro ficava mais pesada a cada palavra. "Agora eu estou com ela, cara. Não se preocupe. Eu sei qual palavra você quer escutar. A mesma que quer escutar desde o acidente." A pausa a seguir não foi intencional, mas devido ao fim da folha. Ainda assim, o silêncio pesou no ar, cheio de drama. E por fim: "Eu te perdoo, nesse momento final. E tenho certeza de que Denise também, onde quer que ela esteja (espero que comigo)."
A carta terminava ali, mas não o que ela significava. O silêncio que se seguiu foi reflexão. Ninguém ousava falar. Por fim, foi Pedro quem quebrou o silêncio, novamente.
- Pra quem é a ultima carta das 3?
Heitor a tirou do bolso, como que para mostrar para os amigos que não era brincadeira. Destacando com o dedo o destinatário, o falou em voz alta.
- Para a Denise.

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