terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A Árvore

Foi a muitos anos atrás. Eu e Heloísa decidimos que nossa despedida da cidade seria uma caminhada noturna, talvez soturna, pelos bares e pontos favoritos nossos. Depois de alguma manguaça, andávamos pela rua de terra mais simpática e escondida que conhecíamos, pra acompanhar o mais bonito por do sol de todos, quando ela começou a rir, alguns passos atrás de mim.
- O que foi?
- Meu tênis já era. - Ela segurava o All Star branco de cano curto, agora sem sola, nas mãos. - Tive uma idéia. - Ela olhava para uma árvore de porte médio, ao nosso lado. Tirou uma caneta do bolso, escreveu algo num dos pés, amarrou os cadarços do par, e o jogou num dos galhos. Então, me entregou a caneta.
- Sua vez. Escreve seu sonho aí e joga lá.
Encarei meus velhos Converse vermelhos. Ainda durariam uns meses, mas resolvi entrar na brincadeira. Com a caneta piloto eu escrevi a coisa que eu mais queria no mundo, tirei os tênis, e joguei lá em cima.
- Eu escrevi que quero ser reconhecida como artista. E você?
- Não vou te contar. Pode ser que não se realize. - Ela mostrou a língua pra mim, assistimos o por do sol. Ela chorou vendo aquela beleza. E continuamos o nosso caminho.
Continuamos ele pela vida. Eu fui fazer faculdade em outro estado, distante. Ela foi pra capital, perseguir seu sonho. Alguns anos depois, vi ela como assistente de palco num programa qualquer. Pouco depois, ela começou a fazer pontas em séries. Comentei com os colegas de república que era uma velha amiga, apenas para ouvir várias piadas. Me formei e fui trabalhar em outro estado, ainda mais distante. Ela começou a fazer papéis regulares, de coadjuvante, em novelas. Logo pegou papéis mais importantes, conforme eu também escalava o sucesso no meu emprego. Um dia, vi uma foto dela num cartaz de um filme. Depois, protagonizou uma novela. Ela estava indo um pouco mais rápido que eu, mas não fiquei muito pra traz. Logo, eu era o chefe.
Haviam dez anos desde a nossa despedida quando eu voltei a visitar minha cidade. Meu pai havia falecido e minha mãe se mudado pra outras paragens, me mantendo distante dali. Resolvi dar uma volta pela cidade.
Tudo estava muito diferente, mudado, maior, um pouco assustador. Eu parei na casa de alguns velhos colegas, e meu carro resolveu parar no meio de uma rua asfaltada, com várias casas de classe média. Desci do carro no intuito de ver o que tinha acontecido com o motor, quando uma gargalhada alta me fez mudar de planos.
- Precisa de ajuda aí, senhor engenheiro?
Era ela. Ainda mais linda do que quando tinha 17 anos, embora absolutamente igual. Igual a ultima vez que eu a vira: descalça. Estava sentada na base de uma árvore. Uma árvore repleta de tênis e sonhos.
- Viu que coisa incrível a gente começou sem querer aqui?
- É a nossa árvore? - Eu disse, já a abraçando, como velhos amigos que a muito não se vêem.
- Parece que é. Vim dar uma olhada, ver se alguém tinha cortado ela, mas parece que fizeram o contrário.
- Que legal, imaginei que essa árvore nem existia mais.
Sentamos e conversamos pelo resto da tarde. Coloquei música no carro, sem ligar se a bateria iria acabar e eu teria dois problemas para resolver. Quando percebemos, o sol tinha ido embora.
Ela encostou a cabeça no meu ombro, sentada ao meu lado, como costumávamos fazer quando eramos só dois sonhadores de 17 anos.
- E então. Agora você é o chefe, rico, poderoso.
- E você é uma atriz nacionalmente famosa.
- Futuramente serei internacional! Apenas espere.
Eu ri do comentário.
- Você tá bem perto de realizar seu sonho.
- E você? Já realizou? Tem como você ficar MAIS bem sucedido?
Eu silenciei, com um sorriso sagaz. Ela me encarou, como que não entendendo.
- Meu sonho nunca teve nada a ver com sucesso profissional. Olhando agora, eu acho que eu nunca deveria ter pedido por ele. Ele ficou pra trás, nunca vai acontecer.
Ela parecia perdida, sem entender nada. Me levantei e comecei a escalar a árvore. Depois de três ou quatro pares vermelhos, encontrei o meu. Desci com ele.
- Pronto. Depois de dez anos curiosa, acho que você merece saber o que eu escrevi aqui.
Ela o pegou da minha mão, e leu. Leu várias vezes, até entender.
- Por que você nunca me falou?
- Acho que na época eu era muito tímido. Muito estúpido. Sei lá.
Uma lágrima escorreu do olho esquerdo dela, me deixando desnorteado, em parte pela beleza da cena, em parte pela incompreensão.
- Quando a gente se despediu aquele dia... Eu chorei.
- Eu lembro. - Ela soltou um breve soluço. - Você disse que ia sentir falta daqui. - E me deu um tapa no peito, um tapa leve.
- Seu idiota. Você é burro ou algo assim? Eu menti!
Eu não entendi nada. Ela olhou nos meus olhos, com raiva, com angústia, com tudo guardado por muito tempo.
- Eu achei que você só me via como amiga. Eu chorei porque ia sentir SUA falta! - E me beijou.
Pouco depois, fomos embora a pé. Deixamos lá o meu carro, e um tênis vermelho onde dez anos antes eu havia escrito "Beijar a Helô".

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