Se levantou pouco depois que os rabiscos acabaram e surgiram algumas aquarelas. Ele gastaria uma semana para ver todos os desenhos e pinturas dela, mas a tarde ia se esvaindo e ainda faltavam coisas para encaixotar.
Ele passou para os livros, que ela tanto prezava. Entre clássicos e blockbusters, deveria ser mais de duzentos. Ele só podia imaginar se ela conseguira ler todos ou se comprara-os para depois e perdera a chance de ler a todos. Os livros começaram a preencher uma caixa, duas, quatro. Quando ele notou, havia uma pilha de oito caixas de livros amontoada no canto da sala oposto às janelas. Entre os últimos livros, havia um caderno.
Estava velho, mas longe de empoeirado. As folhas estavam um pouco gastas e com marcas de dedos. Com um pequeno esforço se lembrou de tê-la visto uma dezena de vezes ao longo dos últimos cinco anos folheando aquele caderno com a capa escarlate. Sentou-se no sofá para ler. Talvez assim ele pudesse entendê-la melhor, compreender o que lhe escapara. Ela sempre fora um enigma para ele.
Nas primeiras páginas, haviam letras e cifras. Eram músicas que ela havia gravado. Ele reconheceu cada uma delas. Até as mais obscuras, as que quase nunca tocavam no rádio e mesmo aquelas que o produtor a convencera a deixar para lá.
Logo depois, haviam pequenos poeminhas, coisinhas bobas, sobre a chuva, sobre livros e sobre papel.
Em seguida, havia uma quantidade sem fim de rabiscos, desenhos, homens-palitos. Ele se encantou com um desenho que tomava uma folha inteira e ela tinha até se dado ao trabalho de pintar. Era a imagem de uma águia pescadora, perfeita, quase uma fotografia. Se ela não tivesse feito tanto sucesso como cantora, talvez tivesse sido uma grande pintora.
A cada página, ele se recordava da história dela, e também da dele, tão emaranhadas. De como ele fora contratado como pesquisador por ela. De como havia passado a ser um colaborador. Da primeira vez que ela havia colocado o nome dele nos créditos de um CD. De como ele lançara um livro, incentivado por ela. De como ele havia se apaixonado por ela, e ela parecia sempre amar um outro alguém, talvez inexistente. E de como ele, ciumento e idiota, havia brigado com ela a seis meses. De como ele, arrogante, havia evitado as ligações dela.
A três dias, ela havia falado com ele. Se encontraram por acaso, num show de um amigo em comum. Ele desacompanhado, solitário. Ela sempre cercada de tantos homens, que a desejavam. Pobres tolos. Ela era do amor fantasma, aquele que ela nunca esqueceria, que ele nem sabia se existia de verdade. Ele mentira, dizendo que estava vendo outra. Ela sorrira, o mesmo sorriso vazio de sempre. Era também uma grande atriz.
O caderno o acompanhou. Cada página virada o ajudava a lembrar a história, como se ela tivesse escrito nele ao longo de todo aquele tempo. No final, havia uma página, toda rabiscada, com violência, que o fez lembrar de duas manhãs anteriores. Ela fora encontrada, deitada na cama. Ele não conseguira ainda ir no quarto. Vinte sete pílulas. Uma para cada ano dela. Ela havia deixado tudo para ele, e ele não conseguia saber por que.
Na contra-capa do caderno, a resposta. Havia um pequeno poema, escrito e datado por ela, numa data de cinco anos atrás, um anos depois deles se conhecerem.
Uma palavra tua, e me calo.
Uma simples olhar seu, e me vejo.
Um só sorriso vindo de ti, e eu esqueço tudo.
Como pode ser tão forte sobre mim,
quando é tão fraco de percepção?
Logo em seguida, um coração desenhado. Com o nome nome dele dentro. Fora um tolo.
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