segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Prólogo

Despertou com Azur, o pajem, o sacudindo, assim como fora nos três ultimos anos, e nos cinco anos anteriores a esses com Galan, o pajem anterior. Azur era muito mais eficiente que Galan. Galan nunca estava com o seu chá pronto no momento de despertá-lo, e ele tinha que fazer o serviço madrigal matutino antes de tomar o unguento que permitia que se movesse sem dores. Mandara enforcar o pajem anterior pela incompetência, mas Azur era mais eficiente, e sempre vinha com o Chá de Papoula morno e adoçado com mel antes mesmo de o acordar.
Como Sacerdote Arghi, ele era o pilar da religião Madrigal e estava abaixo apenas do próprio imperador. Se ele falhasse um dia apenas nos seus deveres estaria abrindo uma janela para o caos e para a ruína do império entrarem.
Assim, Filip sorveu o chá em rápidos goles, tentando esquecer o sabor hediondo, embora o sabor adocicado do mel o ajudasse com isso. Azur o auxiliou na paramentação, colocando sobre ele a batina prateada que cabia ao Arghi usar durante os serviços antes do encontro diário com o imperador. Tirou de baixo do travesseiro a chave tosca que era seu item de maior valor e a prendeu numa dobra interna do vestuário, mas apenas após se certificar que o pajem já havia saído para ordenar a badalação dos sinos.
Caminhou sozinho pelos corredores do palácio. Era o momento preferido de Filip no dia. Aquele setor era exclusivo dos sacerdotes, e apenas os pajens, o imperador e sua guarda podiam se intrometer por ali. Mas o sol ainda não raiara, e os sinos não haviam despertado os demais membros da ordem monástica, e assim ele caminhava sozinho.
Era um longo caminho até o Salão de Madeira, construído a quase um milênio e ainda conservado, mas ele o fez rapidamente. Abriu o imenso portão com a chave que tirara de baixo de seu travesseiro e entrou. Ali a pedra ardia.
A pedra Arghi era o item mais valioso do império, e só o sacerdote por ela nomeado podia adentrar ali. Era assim desde que o fragmento de rocha caíra dos céus aos pés de Ghah, o primeiro imperador, e com ela ele conquistou dezenas de reinos. Ela fumegava, como fazia a um milênio, e ele prendeu sua respiração. Não lhe cabia aspirar o vapor divino que a pedra exalava, e o punico sacerdote que o fizera fora executado por ordens do Imperador.Era a fumaça que interessava, e a pedra nunca deixava de a desprender. Ele recolheu uma garrafa das várias que ali havia, já preenchida com os gases sagrados, e a tampou. Já não conseguia prender a respiração por tanto tempo, por isso se retirou rapidamente.
Do lado de fora, um Sussurro já o esperava. Eram a guarda oficial do imperador, e ninguém sabia dizer se eram mudos ou apenas faziam voto de silêncio. Entregou o recipiente ao guarda, que sumiu nas sombras. Os sinos já badalavam, e ele se dirigiu para o setor da corte, para fazer o desjejum.
As tarefas diárias do sumo-pontífice do império eram várias. O desjejum foi tomado com os demais membros do Conselho, discutindo novamente os assuntos a serem conversados com o Imperador na reunião semanal. A muito Filip se cansara daquela politicagem, e agora ele se resumia a silenciar durante a reunião. Só lhe apetecia dar conselhos ao imperador na sua reunião diária, e ele era o único ali com aquele privilégio.
A tarefa seguinte era ainda mais estafante para o septagenário. Todos os anos novos sacerdotes eram escolhidos, e aqueles que apresentavam maior potencial passavam o ano inteiro sob treinamento do próprio Arghi, antes de partir para uma cidade distante como representante dos interesses da religião. Na época de Filip, apenas os bem nascidos, os terceiros filhos dos nobres, podiam seguir por esse caminho. Hoje, dezenas de estrangeiros eram acolhidos, devido ao interesse do imperador e espalhar a crença. O velho sacerdote ficava muito desgostoso com aquela situação, tendo que ensinar o labor sagrado a um bando de bárbaros, mas seu ultimo interesse era desgradar o imperador.
Ainda assim havia um rapaz que Filip a muito tentava convencer o imperador a tirar do treinamento. Um rapaz de nome Artor, que segundo constava era o último sobrevivente da família real de Dararas. Era estúpido e covarde, além de preguiçoso. Mas era do interesse do imperador que ele se tornasse um sacordote importante. Em primeiro lugar para acalmar o povo de seu reino, que acreditaria estar em uma posição de prestígio no império, e em segundo lugar para impedí-lo de ter filhos, acabando assim com sua linhagem de sangue. O sacerdote Arghi sentia calafrios só de imaginar o rapaz ocupando sua posição no futuro.
Depois de instruir os jovens bárbaros, Filip tinha seu encontro diário com o imperador. Oito anos antes, quando assumiu a posição de importância, ele ficou satisfeito ao perceber que o velho imperador escutava atentamente seus conselhos. Mas o velho morrera logo. Seu filho, o novo imperador, inicialmente também dera ouvidos ao conselho do velho sacerdote. Mas com o tempo havia se afastado, passando a reger sem ligar quase nunca para as idéias do septagenário. Ainda assim, nunca havia se atrasado ou faltado a um encontro sequer entre os dois, exceto quando estava em campanha. Até aquele dia.
- Meu senhor, estava preocupado pela sua demora. - Ele disse ao ouvir a porta se abrir à suas costas.
- Pois pode parar de se preocupar. - Respondeu uma voz feminina. - E pode me chamar de senhora também.
O velho sacerdote se virou, apenas para encarar Malis, a Ninfa. As ninfas eram as responsáveis por tragar os ares a pedra, e nenhum sacerdote jamais conhecera o que de fato a pedra fazia. Vinham da ilha de Dels, e nos tempos antigos eram trocadas a cada ano. Malis acabara com aquela tradição ao se tornar amante do jovem imperador cinco anos antes, e muitos diziam, nos cantos escuros, que era agora ela que realmente governava o império.
-Mas que disparate é esse! - Filip se ofendia com a presença da mulher, com sua postura contrária às tradições. - Onde está o Imperador?
- Ele está ocupado. Eu tratarei dessa reunião no dia de hoje. E nos dias vindouros também. Acostume-se.
- Ocupado para falar comigo? - Ele se levantou da cadeira, colérico. - Que loucura é essa?
- Marelin decidiu que essas reuniões diárias com o senhor não são mais nescessárias, mas para evitar que o senhor se ofenda, estipulou que eu viesse fazer o canal entre suas idéias e o ouvido dele.
- De onde surgiu essa insanidade? - Ele não podia acreditar naquela blasfêmia. - Que tipo de vermes você colocou na cabeça do Imperador para que ele decidisse isso, meretriz? Minha ordem tem trabalhado para o sucesso do império a quase um milênio. Eu sou o sextagésimo sétimo em minha posição!
- E é melhor controlar a lingua, se não quiser que um sextagésimo oitavo assuma no dia de amanhã. - Ela disse, lambendo os lábios e esboçando um sorriso. Se vestia como uma puta, na visão de Filip, mas sempre fora assim com as ninfas. Malis apenas levara a situação um passo a frente, assumindo as tarefas de uma puta também. - Mas vou ser piedosa com você, e não comentarei o que disse agora ao imperador, se prometer se lembrar que minha ordem é ainda mais antiga que a sua.
Filip não podia ouvir mais uma palavra da sua mulher, e saiu apressado do salão, sem dizer mais nada.
O resto do dia pareceu vazio. O almoço não tinha sabor, e ele pouco prestou atenção aos relatórios que seu pajem leu durante a tarde, sobre a situação da igreja nos vários cantos do império. Passou o jantar com o Conselho sem comentar sobre a vil mudança. Sabia que se eles soubessem daquilo ele deixaria de ser um ouvinte opcional à mesa para se tornar um ouvinte obrigatório. Mas ele sabia que logo eles saberiam, por alguma abelhinha, sobre as mudanças no jogo político.
Após o jantar, ele fez sua oração diária em frente ao deus Zaraghi, em voz alta, na presença de vários devotos, nobres e dos aprendizes. Mas as palavras sairam automaticamente de sua boca, enquanto ele imaginava o que pensariam todos se soubessem de tudo aquilo. "Pobre velho. Preso a suas tradições, só uma figura simbólica". Só lhe restava um papel importante no imenso jogo que era o poder, aquele que ele fazia todas as manhãs, antes de qualquer outro dos presentes despertar. Pensando nisso, adormeceu rapidamente.
Acordou no dia seguinte com um zumbido nos ouvidos. Dormira demais, ele podia sentir. Não sentiu o balançar típico que Azur usava com calma para o acordar. Sentia as dores nos ossos. Olhou a sua volta, e não encontrou o Pajem.
- Azur? - ele gritou, mas em vão. O rapaz não estava ali. Aquilo custaria a ele a vida, maldito. Não podia se atrasar para a única tarefa que lhe era cara. Olhou pela janela, e viu os raios do sol já colorindo o céu. Estava mais que atrasado. Era bom que Azur estivesse preparando o chá em seus aposentos, logo ao lado dos do sacedote.
Se esforçou para abrir a porta entre os dois cômodos, com os ossos gritando de dor. Chamou mais uma vez pelo rapaz, antes de vê-lo, mas ele não respondeu. Por que não podia.
Mesmo que ainda estivesse vivo, seria difícil para o pajem o responder com o pulmão perfurado. Uma só entrada perfurara o pulmão esquerdo do garoto, e a ferida estava negra. Nenhum sangue escapava pelo furo. Em suas mãos, o aparelho de chá. Uma única vela iluminava todo o quarto, acompanhada na mesa por uma máscara de ferro negra e angulosa.
Filip tentou gritar, mas uma mão com uma luva negra o impediu. O invasor era magro, mas fortíssimo. O velho não tinha nenhuma chance.
- Tem algum ultimo pedido, alguma última palavra? - O estranho lhe sussurrou no ouvido. Ele balançou a cabeça afirmativamente. O estranho tirou a mão de sua boca, mas ele não ousou olhar para trás, nem gritar. Não adiantaria gritar, ninguém ouviria. Os corredores estavam vazios.
- Apenas me diga. - ele disse, com a respiração pesada. - Foi Malis quem lhe mandou?
- Não. - Respondeu o estranho, um segundo antes de perfurar o sacerdote como fizera com o pajem.

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Saindo um pouco do tema do blog, post meio que apresentando um dos mundos que eu estou trabalhando para transformar em livro, na temática de fantasia medieval. E aí, gostaram?

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